Ser Amargo…

Vem por aí abaixo o novo filme de Saramago.
– Acho mais simples dizê-lo assim, para poupar tempo.

Ao que se diz é uma alegoria sobre a cegueira.
Sobre ficarmos todos cegos (…ou quase). E sobre o que lhe sobrevém.
(Deve ser muito giro…)

E ao que parece já levantou celeuma.

1ª Questão.

Diz a Federação Americana de Cegos, nesta página do seu site, que não gostou que no filme a cegueira aparecesse associada a “[degradação] moral, social e higiénica“. E os cegos como “incompetentes, sujos, malévolos e depravados […], incapazes de tarefas simples como vestir-se, lavar-se ou encontrar a casa-de-banho.
Não gostaram que personagens que vêem sejam apresentadas como“física, mental e moralmente superiores às que não vêem.”

Relembram: “A verdade é que os cegos fazem normalmente o que todas as outras pessoas fazem, são professores, advogados, mecânicos, canalizadores, programadores, assistentes sociais, […] vão à missa, fazem voluntariado, educam crianças, gerem negócios, têm actividades de recreio, na verdade, como qualquer outra pessoa...”
Por isso merecem as mesmas condições de oportunidade, emprego, confiança. (Para o que o filme dizem não contribuir.)

Ora, como ainda não conheço o filme, não julgo ninguém.
O que é certo é que lá nos States este tipo de coisa é mato. Grupos de influência mexerem-se contra o que julgam que lhes toca em nervos mais expostos.
Grupos sexuais, corporativos, rácicos, profissionais, artísticos, associados por mil motivos, fazem isto a toda a hora. Porque sabem que têm esse direito e porque querem exercê-lo. – Não é como cá!

2ª Questão.

A resposta de Saramago, foi “à Saramago”: superior, amarga e com uma pitada de má criação.
Baseada no trocadilho ordinarote de “o pior cego [ser] aquele que não quer ver“.

Superior, Saramago, entrincheirado na etimologia, elucida que “isto não é uma polémica, porque para isso é preciso dois interlocutores.” (Ou “são precisos“!…). Como quem diz: “se o Céu não replica ao burro, para todos os efeitos nem sequer voz ele tem…
Superior, esclarece que, para si, uma crítica não passa de “uma manifestação de mau humor assente sobre coisa nenhuma“. Sendo que não se sente obrigado a discutir o que quer que seja com quem lho pretenda sem lhe pagar.
…E embrulha!

Mas vai mais longe. E desbrava embrenhando-se na má-criação.
O pior cego é aquele que não quer ver“;
Quem tem estado a criticar o filme, «infelizmente» não o poderá ver“;
Neste caso é uma associação de cegos que decide ter uma opinião sobre um filme que não viu“;
é um rodar de forquilha dentro de uma chaga aberta, lenta, paciente, saborosa, velhacamente.
É a redundância cruel própria dos malévolos – ou dos estúpidos, não devendo ser o caso.

Mas é a amargura que – sempre – impera na dinâmica deste homem.

Remata com uma tirada que – se não precipitada – encerra uma acidez corrosiva que lhe corre nas veias.
A estupidez não escolhe entre cegos e não-cegos.”

Apenas.

O discurso dos “estúpidos”, por oposição aos “não estúpidos” – que decerto bem representará.
Uma dicotomia, um maniqueísmo habituais na boca de certas pessoas – como na de Saramago, infelizmente – e que é só triste.

Por estas e outras é que não leio livros de Saramago. Isto é, não o sustento com o meu preço de capa.
Mas também não o peço emprestado, copio, alugo, descarrego da net ou outra.
Não consigo dissociar uma obra artística do seu autor. E deste autor quero distância. Deste homem. Desta pessoa.

Porque sendo certo que a estupidez não distingue entre quem vê ou não, a cegueira não assiste de forma diferente aos estúpidos ou aos “inteligentes”.
E a Saramago, que concedo que não seja parvo nenhum, falta crónica aquela vontade de ver tudo, que assiste aos homens de boa-vontade. A capacidade de contrariar os próprios olhos e dizer-lhes que, viciados, o que vêem pode não ser assim.

Quando um homem só em 2003 escolheu um pretexto avulso para se desvincular do apoio que sempre dera ao regime de Castro – e vergonhosamente o retoma -, quando um homem só recentemente se digna mostrar cepticismo retroactivo em relação às “concretizações” da Rússia soviética, não mostra ter mais vista que a pouca que as palas ideológicas lhe permitem ter.

Por isso me é estranho.
Por isso estamos sistematicamente em lados diferentes.
Por isso recupero um pequeníssimo texto com uma série de anos, que guardei até hoje.

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