[Acabaram há uns tempos os Paralímpicos de Pequim e já se pode fazer um retrato actualizado da China, aliviado da mediatização e propaganda a que estivemos maciçamente sujeitos – o que ajuda, todavia, ao esboço da retratada.]
A China é para mim um verdadeiro exemplo.
– E pela sua envergadura um grande exemplo.
Um exemplo de como nada – nem sequer um património de 6000 anos – protege em definitivo uma civilização da decadência.
Nação do papel (e da História), da imprensa (e da Comunicação), do papel-moeda (e do Estado), da pólvora (e da Guerra), da seda (e do Intercâmbio), do garfo (e da Civilidade), da bússula (e da Aventura), a China foi ponto de partida para muitos momentos da realização Humana.
Nação da Grande Muralha e da língua em uso mais antiga do mundo.
Mas isso foi outrora.
O século XX chinês contou-se em poucas palavras.
Fim da China dinástica, guerras de influência intestinas, convivência forçada entre nacionalistas e comunistas face ao inimigo japonês, retomar do conflito interno após a vitória na II Grande Guerra, triunfo do comunismo,… até hoje.
Com tudo de bom que se sabe que o comunismo já trouxe às Nações da Terra.
A infalibilidade, o voluntarismo, a planificação da sociedade e do pensamento, as purgas, os assassínios em massa, as grandes fomes.
Quando a 1 de Outubro de 1949 – fez agora aninhos – a China comunista de Mao Tsé Tung entrou em Revolução Cultural, a vida dos chineses mudou para sempre.
Com Movimentos de Cem Flores – através do que de mais perverso os Estados podem ser – os pensadores independentes foram chacinados sem piedade, como exemplo, como necessidade absoluta de qualquer regime que faça da ignorância e da alienação a chave do seu sucesso.
Com Grandes Saltos em Frente – com políticas megalómanas e desvairadas – o povo foi condicionado a ignorar as suas básicas necessidades e a seguir os ditames abstractos e alucinados de um governo unipessoal que o garroteou devagar. (Como quando na Campanha das Quatro Pragas os chineses foram instados a matar pardais por “comerem sementes”, o que resultou em pragas maciças de insectos e, de novo, fome…)
Com a repressão brutal da filosofia, da política, das artes, da religião, da comunicação, do academismo.
Entretanto um mundo a mudar, fora de portas. Entretanto o comunismo a ruir a toda a volta.
E um povo – apesar do pesado lastro de um passado recente de sofrimento e miséria – desejoso de fazer parte de algo novo e melhor.
…Que se o capitalismo dá para alguns, porque não há-de um governo pô-lo ao serviço – absurdo – de uma causa que, como qualquer outra, precisa de finanças?…
Quando falei neste post dos “empatas” da opinião, era disso que falava: da hipocrisia – o mundo está cheio delas – de continuar a mostrar a China como farol de virtude, último bastião de uma pureza de intenções e objectivos globais independente da cavalgada selvagem do capitalismo e da materialidade…
…A China, exemplo caprichoso e acabado da decadência provocada pela sub-cultura do capital.
Poucos Países como ela terão levado tanto ao extremo o fito do lucro. Do ganho pecuniário. Do encaixe. Da Balança Comercial.
Com total desprezo pelo equilíbrio, pela razão, pela humanidade ou pela vida.
A coberto da pureza e da transcendência do seu desenvolvimento alarve, a China achou-se livre para fuçar alarve no capital mais sangrento.
– China que ninguém ousaria jamais apelidar de “capitalista”, tal a sua retórica, tal a sua prática políticas… –
Só que o facto é que aconteceu. Ponto.
Hoje a China é um País com um ar, um solo, com recursos hídricos em boa parte envenenados pela total incúria do seu “desenvolvimento”.
A mineração desenfreada, o consumo brutal de carvão na indústria com “emissões de CO2” gigantescas de que já é campeã mundial – com a conivência da “comunidade internacional” que se marimba porque a China está “a desenvolver-se” -, as descargas industriais tóxicas nos leitos de rios e lagos,… fazendo com que a China tenha as dez mais poluídas cidades do mundo.
…E das mais miseráveis condições de trabalho das classes que teoricamente eleva à qualidade de senhores da terra.
Daquela terra!
Mas há sempre uns Jogos Olímpicos para entreter.
Que quem mente, descarado, mente sempre. Quem engana, sempre o faz. Quem não tem vergonha, todo o mundo é seu.
…E o “Mundo Ocidental”, sempre tão mavioso de ecumenismo, sempre tão indolentemente sedento de entretém, tudo quer, tudo devora, mistelas putrefactas barradas de exotismo.
“Ai que gira que é a China!, tão afável, agradável, tão moderna e ocidental…”
“Onde estão as atrocidades que se lhe atribuem e que ninguém vê?… Ah, bem parecia… Malvada manipulação! Coitadinho do PCC…”
“Que maravilha de festa!, viste aquele fogo todo?”
“…E aquela pequenita?…Tão fofinha e ladina?”
“E aquela tolerância, com tanta criança em palco, dos quatro cantos da China?”
“E aquela mistura tão gira do pequenito e do NBA, cada um com a bandeirinha?…”
Acontece que o fogo-de-artifício foi uma aldrabice, passado em diferido. Gravado, aquecido em micro-ondas e servido como fresco! (Com a curiosidade de que toda a gente o soube e só alguns se revoltaram!)
Acontece que a pequenita não cantou a ponta d’um corno. Foi escolhida pelo Partido por ser tão engraçadinha e mimou por cima da voz de uma criança – ao que parece – “inapresentável” o que lá lhes dava jeito para a cerimónia “em directo”. (Com a curiosidade de toda a gente ter sabido e alguns ainda acharem menor!)
Acontece que as criancinhas fruta-cores que tão bem ilustraram ao vivo a tolerância e equidade com que o governo chinês trata todas as etnias do país… eram todas (…) da etnia dominante na China.
Acontece que o “pequenito” e o gigantone não foram ali colocados ao acaso. O gigantone Yao Ming, jogador da NBA que adoçou a boca aos espectadores ocidentais, estava acompanhado por um sobrevivente especial do recente terramoto de Wenchuan. Um rapazito de nove anos que não só sobreviveu como heroicamente salvou dois colegas dos escombros e assim se tornou um ícone nacional – tragédia que motivou a ira de pais que questionaram o Governo sobre a fraca qualidade da construção das escolas que ruíram e provocaram centenas de mortos, por isso foram pagos para se calarem e desta forma ilusionados para atenuar paixões. Em mais um golpe de propaganda.
Quando na verdade a China continua ininterruptamente a manipular tudo e todos.
Seja ao “educar” populações menos conformes, seja ao limitar descaradamente o acesso interno à informação sobre o estado das coisas, seja ao impor com punho de ferro a sua vontade aos mariquinhas dos ocidentais que se lhe submetem – como no caso das bandeiras a meia-haste que os espanhóis não puderam pôr na Aldeia Alímpica aquando do acidente aéreo de Madrid, sendo desamparados pelo Comité Olímpico Internacional…
…Seja, por motivos de propaganda olímpica, ao ocultar por uma semana informação sobre o flagelo do leite envenenado, permitindo pelo menos durante mais esse tempo a contaminação de crianças prosseguisse.
Repugnante.
Valeu uma voz, durante os Jogos, que denunciou o que havia a denunciar.
A da – por vezes equívoca – Amnistia Internacional.
Fora isso, a paz. – E “os melhores Jogos Olímpicos de sempre”.
Para sempre, paz na nação. Paz no Mundo. Paz nas consciências.
Apesar da vergonha. Apesar do óbvio. Apesar do apelo.
Por isso, e cada vez mais, um adeus à China.